20 de setembro de 2019 Tecnologia a favor da população com anomalias craniofaciais
Cranflow é um software registrado pela Unicamp e Ufal que facilita o acompanhamento de pacientes e pesquisas para fomento de políticas públicas
Texto: Kátia Kishi | Foto: Pedro Amatuzzi
A cada dois minutos e meio, nasce no mundo uma criança com fenda oral. Essa é a anomalia craniofacial mais comum, embora existam outras com menor ocorrência, mas também com impacto clínico relevante.
As anomalias craniofaciais compreendem diversas condições clínicas de causas predominantemente genéticas. Constituem um grupo diverso e complexo, cuja prevalência varia de acordo com regiões geográficas e grupos étnicos, conforme contextualiza Vera Lúcia Lopes, docente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estatual de Campinas (FCM Unicamp).
São poucos os casos letais de pacientes com anomalias craniofaciais e a maioria tem uma expectativa de vida normal, no entanto, a professora do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Isabella Lopes Monlleó, explica que as anomalias causam impactos sobre a fala, audição, aparência e cognição, o que afeta tanto a saúde quanto a integração social dessas pessoas, além de demandar tratamento com diferentes profissionais da saúde, pelo menos, até à adolescência.
Diante desses problemas que afligem tantos brasileiros, as pesquisadoras se uniram em 2002 para liderar o Projeto Crânio-Face Brasil, com a participação de outros 10 centros colaboradores e de fomento de órgãos como Fapesp, CNPq e Fapeal. Entre diversos avanços no conhecimento e formação de recursos humanos qualificados, um dos produtos apoiados pela Fapesp foi o desenvolvimento de um software chamado CranFlow, registrado pela Unicamp e Ufal e usado para coleta e extração de dados para formar a Base Brasileira de Anomalias Craniofaciais (BBAC).
No momento, o Cranflow aceita o cadastro dos casos mais comuns de anomalias craniofaciais que são as fendas orais e a síndrome de deleção 22q11.2, também conhecida como Síndrome Velocardiofacial ou de DiGeorge. Essa é uma doença rara, associada a anomalia cromossômica e que pode ter alterações de palato com ou sem fenda oral. O cadastro é online e realizado por profissionais treinados de centros de genética ou hospital de reabilitação craniofacial que optam por colaborar com o preenchimento dos dados, sob a motivação de constituir uma base de informações mais ampla, dedicada à área.
No Brasil, já há um volume grande de informações no DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), no entanto, as anomalias congênitas – como as craniofaciais – estão contempladas apenas na Declaração de Nascido Vivo. Isso significa que não são cadastradas informações sobre diagnóstico específico de cada indivíduo ou seu acompanhamento no decorrer do seu tratamento, e sim, apenas no momento do nascimento.
A ausência desse registro de informações no decorrer do tratamento do indivíduo dificulta o estudo sobre distribuição, causas e identificação de necessidades na área de saúde. “Já com o CranFlow, dados coletados em contexto de pesquisa têm permitido o reconhecimento de indivíduos com características clínicas e necessidades de saúde semelhantes. Como consequência, possibilita o reconhecimento de características da população atendida, como subsídio para políticas públicas. Por exemplo, a otimização de insumos para diagnóstico e, ao longo do tempo, embasar propostas de educação e prevenção, assim como de medicina de precisão para o tratamento”, justifica a professora da Unicamp, Vera Lúcia Lopes.
Avanços na saúde pela informação
Além da possibilidade de cadastrar informações no decorrer do acompanhamento do paciente – e não somente no momento do nascimento – um dos pontos mais inovadores do software Cranflow é que ele permite analisar diferentes anomalias craniofaciais a partir de sinais clínicos em comum, anexar arquivos de exames e imagens, além de preencher online dados clínicos, sociodemográficos e genéticos.
A modernização no cadastro e na forma de extrair os dados para a análise trouxe melhorias palpáveis para quem lida diretamente com o paciente. A professora da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP), Agnes Fett-Conte, lembra que antes todo o detalhamento era feito no papel e com menos agilidade. Porém, “quando a base ficou pronta e veio o CranFlow, a facilidade foi enorme porque é só preencher, sem a necessidade de descrever o detalhamento que já está nas opções. O questionário é imenso, mas é fácil”.
Fett-Conte é a responsável pelo centro colaborador do Hospital Base da FAMERP, centro médico que atende mais de 2 milhões de habitantes dos 102 municípios pertencentes à Divisão Regional de Saúde de São José do Rio Preto e que já alimentava a Base Brasileira de Anomalias Craniofaciais durante o acompanhamento de seus pacientes.
Além de colaborar com o cadastro dos pacientes que aceitarem integrar a BBAC, o que pode ser feito por qualquer centro interessado em contribuir com a formação da base, o Hospital da FAMERP também licenciou a versão do software CranFlow que permite a extração dos dados depositados. O objetivo é que os dados extraídos sejam objeto de pesquisas que auxiliem nas opções de tratamento da população. O licenciamento do software com vistas à extração de dados é gratuito, mas dependendo da complexidade das correlações e dados extraídos ou dos treinamentos requeridos, podem haver taxas de serviço ou de consultoria.
De acordo com a professora Lopes, a extração de dados para análises mais aprofundadas se mostra essencial para caracterizar a população estudada. Por exemplo, os pesquisadores dos centros colaboradores publicaram em 2018 no periódico Birth Defects Research alguns dos resultados obtidos com auxílio do software que armazenou dados de 1546 famílias predominantemente diagnosticadas com fendas orais, notando-se que 55% tinham origem no Nordeste do Brasil, mesma região onde houve maior frequência de casos de consanguinidade parental e analfabetismo materno, sugerindo possibilidades para ações e políticas públicas específicas na região brasileira para tratar e prevenir novos casos.
“O CranFlow ajuda a identificar as necessidades de saúde específicas da população com anomalias craniofaciais, além de otimizar o acesso a investigações em genética por meio de agrupamento de indivíduos com necessidades semelhantes. Esses aspectos contribuem para o incremento clínico, terapêutico e de prevenção, cujo benefício final é percebido pelo indivíduo como melhoria de sua qualidade de vida”, defende a docente da Unicamp.
O Projeto Crânio-Face Brasil aceita colaboração de novos centros ou geneticistas. Interessados podem acessar o site da FCM Unicamp.
O software Cranflow poder ser licenciado por intermédio da Agência de Inovação Inova Unicamp. O contato para licenciamento desse e de outras tecnologias pode ser feito com a equipe de Parcerias da Inova Unicamp por meio do e-mail: parcerias@inova.unicamp.br