26 de janeiro de 2024 A década da saúde: parceria entre Unicamp e Cargill mudou o consumo de gorduras no país
Tecnologias desenvolvidas na Unicamp em parceria com a Cargill permitiram a produção da primeira gordura de baixo teor de saturados para a indústria brasileira e, ainda hoje, estão presentes em inúmeros alimentos distribuídos pelo país
Texto: Christian Marra e Ana Paula Palazi | Foto de capa: Jacqueline Macou
Todos os dias, toneladas de produtos como biscoitos, sorvetes, margarinas, cremes, massas instantâneas, chocolates, bebidas lácteas etc., produzidas por grandes empresas, são consumidos no Brasil. E esse consumo ainda é alto. Estudos feitos com base nas Pesquisas de Orçamentos Familiares (POF), elaboradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos anos de 2008–2009 e 2017–2018, apontaram um aumento de 5,5% no consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil ao longo desse período. Além disso, no final da década passada esses alimentos respondiam por 20% do total de energia consumida pelos brasileiros.
Alimentos ultraprocessados podem ser ricos em gorduras saturadas e elevar os níveis de LDL no sangue (conhecido como “colesterol ruim”). Por esse motivo, pesquisadores em todo o mundo, há muitos anos, estudam alternativas para contornar esse problema, tornando os produtos industrializados mais saudáveis, sem perder características como o seu sabor e sua textura.
E foi com esse objetivo que surgiu uma das parcerias mais longevas entre a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Cargill, que influenciou diretamente no padrão de consumo de gorduras no país. A empresa é uma gigante do setor alimentício, que processa e distribui grãos e outras mercadorias para abastecer fabricantes de alimentos para consumo humano e animal, e está presente em cerca de 70 países. O projeto de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) com a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) trouxe inovação para o setor, com a invenção de um produto com baixo teor de gordura trans e que, no início dos anos 2000, já apresentava alta redução de saturados para os padrões da época.
Como começou a pesquisa da gordura de baixo teor de saturados
O processo começou há quase duas décadas, a partir de uma demanda do mercado. Na ocasião, duas multinacionais procuraram a Unicamp para o desenvolvimento de um convênio de pesquisa, que tinha por objetivo a retirada de gordura trans dos recheios de biscoitos. Em 2007, foi assinado o convênio entre a Unicamp e a Cargill, que renderia uma patente premiada nas categorias Tecnologia Licenciada e Tecnologia Absorvida pelo Mercado no Prêmio Inventores da Unicamp, na edição de 2011, organizado pela Inova Unicamp. A partir dessa parceria com os pesquisadores do Laboratório de Óleos e Gorduras da FEA, o conhecimento para a produção da nova gordura avançou e foi transferido para a Cargill, sendo comercializado na forma de produtos que passaram a ser adicionados na fabricação de recheio de biscoitos.
Os estudos continuaram no laboratório da Unicamp, desta vez sem investimento privado. Em 2012, foi a vez da Unicamp procurar a Cargill com uma nova solução inovadora para o mercado de ingredientes. Tratava-se de uma forma de reduzir ainda mais os teores de gorduras saturadas em diversos alimentos, sem influenciar no sabor ou na textura dos produtos.
Após uma série de estudos que incluíram testes de bancada, produção em escala piloto, aplicação em produtos finais e avaliação sensorial, o produto ficou pronto. A nova gordura passou a ser fabricada em escala industrial e começou a ser fornecida a fabricantes de alimentos, que por sua vez, puderam reduzir os índices de gordura trans e saturadas de centenas de produtos consumidos no Brasil. Uma parceria que retorna até hoje consideráveis recursos na forma de royalties à Unicamp.
“A Agência de Inovação Inova Unicamp participou de todas as etapas desses processos, desde o contato inicial com a empresa até a elaboração do contrato de licenciamento. A Cargill é um dos importantes casos de sucesso na transferência de tecnologias da Unicamp. Além do impacto positivo na sociedade, essa relação universidade-empresa gera royalties que ajudam a roda da inovação a girar na Unicamp”, lembra Iara Regina da Silva Ferreira, Coordenadora de Negócios e Inovação da Inova Unicamp.
Tecnologia inédita em todo o mundo
A professora aposentada da FEA Unicamp, Lireny Aparecida Guaraldo Gonçalves, que foi homenageada pela Inova Unicamp, em 2023, por sua contribuição à proteção da propriedade intelectual e iniciativas voltadas à inovação na Unicamp, participou do desenvolvimento da nova gordura desde as primeiras pesquisas. “O mundo inteiro estava à procura de uma solução como essa”, comenta Lireny.
“Pesquisadores de vários países estavam buscando uma maneira de reduzir o uso da gordura trans nos alimentos. Mas era preciso encontrar um produto substituto com menos teor de gordura saturada e que apresentasse, ao mesmo tempo, as mesmas características sensoriais, e ainda fosse viável para fabricação industrial. O desafio era muito grande”, comenta a inventora.
A professora Lireny orientou na FEA Unicamp o doutorado do pesquisador Renato Grimaldi, que posteriormente viria a participar e trabalhar no desenvolvimento das tecnologias. Ele conta que, em um primeiro momento, uma grande multinacional de alimentos havia procurado a FEA para desenvolver uma gordura com menor teor de saturação. “Contudo, era preciso contar com uma fornecedora de gorduras para que o novo ingrediente pudesse ser entregue a essa indústria de alimentos. Foi naquele momento, há 16 anos, que surgiu a relação com a Cargill nessa pesquisa”, explica.
Assim, a equipe do Laboratório de Óleos e Gorduras da FEA Unicamp desenvolveu a primeira tecnologia, uma gordura com menor teor de saturação, que passou a ser usada no recheio de biscoitos industrializados. “Mas nós sabíamos que a redução desse teor podia ser maior. Nós podíamos melhorar ainda mais essa gordura”, lembra o pesquisador.
Uma pesquisa que se antecipou às exigências do mercado
Renato comenta que tinha o hábito de acompanhar as sessões públicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e do Ministério da Agricultura e Pecuária, em Brasília. Dessa forma, ele sabia que a gordura saturada, tal como o sódio e o açúcar, estavam na mira dos órgãos de saúde pública na década passada e que uma redução ainda maior do seu consumo seria logo exigida pelo governo. “Resolvemos então evoluir essa pesquisa, de forma independente, dessa vez sem parcerias com empresas. A demanda do mercado iria surgir inevitavelmente. Decidimos antecipar essa demanda”, comenta Renato.
Segundo ele, a nova fase de pesquisa teve como objetivo quatro pontos essenciais para atender aos requisitos da indústria:
“Era preciso uma solução que não afetasse os aspectos sensoriais da gordura – mesma cremosidade, consistência e textura –, seu tempo de vida deveria ser longo o suficiente para não reduzir o prazo de validade dos alimentos, seu custo não podia ser superior ao da gordura usada até então e, além de tudo isso, não poderia exigir a substituição do maquinário das instalações industriais dessas grandes empresas”, explica o pesquisador.
Nessa fase de desenvolvimento, Renato comenta que participou de centenas de testes sensoriais com os produtos. “Conseguimos chegar a uma nova gordura com teor de cerca de 35% de saturados. Com destaque à sua estabilidade, pois quanto menor a saturação, maior a tendência de a gordura se comportar de forma líquida, o que é próprio das gorduras insaturadas. A nova gordura tem uma ótima estabilidade estrutural e térmica, ou seja, assegura que os alimentos não se oxidem facilmente, mantendo sua estrutura e uniformidade”, explica.
Com a publicação de uma nova resolução da Anvisa, mais exigente, a parceria com a Cargill foi reatada, permitindo que a tecnologia avançasse, agora, em seu desenvolvimento comercial. Em entrevista ao Podcast Prontos para o Futuro, em comemoração aos 10 anos do Centro de Inovação da Cargill, Marcos Guirardello, líder de pesquisa e desenvolvimento na área de produtos de consumo e óleos e gorduras da empresa, falou sobre a relação com a Unicamp:
“Temos uma parceria de longa data com a Universidade e projetos de inovação exigem que a gente saia da zona de conforto. Essa confiança mútua já nos ajudou permitindo uma abertura e uma interação melhor e produtos estratégicos, como foi o caso do Lévia+e. Nós colaboramos com o que foi necessário para que os pesquisadores explorassem ao máximo seu conhecimento e potencial de execução, e principalmente as instalações e recursos que temos no nosso centro de inovação. O resultado foi um produto que fez e ainda faz muito sucesso”, afirma Guirardello.
A Cargill e uma nova forma de consumir gorduras no país
Dessa forma, nasceu a tecnologia que a Cargill usa em larga escala para produzir gorduras com baixo teor de gorduras saturadas em diversas aplicações, que ampliaram ainda mais a parceria da empresa com a academia. Não é exagero afirmar que ela mudou a maneira de consumir gorduras no Brasil, pois ela é fornecida a grandes fabricantes de alimentos que, por sua vez, distribuem seus produtos com menos gorduras trans em todas as regiões do país e da América Latina.
A partir das tecnologias desenvolvidas na Unicamp, a empresa lançou em 2016 a Lévia+e e, em 2019, a Lévia+c, uma gordura que, conforme a empresa destacou na ocasião, “permite a redução dos teores de gorduras saturadas em sorvetes, cremes e bebidas lácteas, proporcionando cremosidade, consistência e textura ideais ao produto acabado.”
A Cargill também destacou em seu site a parceria com a Unicamp no desenvolvimento da nova gordura. Segundo a Cargill, o Lévia+c contém apenas 35% de saturados e um teor máximo de gordura trans de 2%. E ainda apresenta a mesma estrutura física de uma gordura tradicional, o que permite a redução no teor de gordura saturada nos produtos acabados.
O protagonismo da Inova Unicamp
Ao longo de todo o desenvolvimento da nova gordura, a Agência Inova da Unicamp desempenhou um protagonismo essencial no processo de conexão entre a Universidade e a Cargill. “As ideias que geram resultados de pesquisa precisam ser protegidas, mesmo aquelas que ainda estão em desenvolvimento”, diz Renato Grimaldi. Ele ainda acrescenta:
“É preciso que tudo fique registrado e protegido em contratos, e a Inova sempre nos apoiou ao longo desses anos. Também é preciso ter uma ótima noção de precificação – e nem sempre o mundo acadêmico tem isso. Em resumo, falta tudo isso aos pesquisadores. Por isso, trabalhar com a equipe da Inova nos trouxe um enorme aprendizado de relacionamento com as empresas”, destaca Renato.
Outro aspecto que Renato ressalta foi que “a Inova profissionalizou muito a relação universidade – empresa. A Agência nos ensinou a nos comportarmos de forma profissional na relação com elas. Isso pode exigir mais burocracia, mas é necessário para garantir as proteções”.
Renato também comenta que os benefícios dos royalties para a FEA permitiram aumentar a infraestrutura de pesquisa da faculdade. Segundo ele, “uma consequência foi um amplo investimento em novos laboratórios, equipamentos, salas de aula etc. A infraestrutura de pesquisa da FEA foi reforçada, favorecendo também a outras pesquisas”.
Vale acrescentar, por fim, que a interação Unicamp-Cargill continua gerando frutos que são reconhecidos com satisfação entre os participantes dessa história, conforme afirma a professora Lireny: “É um orgulho ver o conhecimento científico e os resultados de nossas pesquisas gerando profissionais qualificados para o mercado e sendo aplicados até hoje na melhoria da qualidade de vida das pessoas”, conclui Lireny.