15 de outubro de 2024 Brasileiros participam do maior experimento internacional que vai estudar neutrinos
Pesquisadores da Unicamp criaram método de purificação de argônio líquido para o projeto Dune. Tecnologias foram protegidas com estratégia da Agência de Inovação Inova Unicamp.
Texto: Renata Fontanetto – Revista Pesquisa FAPESP | Foto: Acervo Pessoal – Pascoal Pagliuso
Uma inovação tecnológica brasileira deverá ser usada pelo Deep Underground Neutrino Experiment (Dune), empreendimento bilionário liderado pelo Fermilab, o principal laboratório de física de partículas dos Estados Unidos, com previsão de início de funcionamento até o final desta década. Com o apoio de outras instituições de pesquisa e empresas nacionais, uma equipe de físicos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolveu um método de filtragem que retira um tipo de impureza comumente encontrada no argônio líquido: átomos de nitrogênio.
Mantido a 184 graus Celsius (oC) negativos em câmaras, o argônio, que é um gás nobre à temperatura ambiente, torna-se líquido e pode ser empregado para atingir o principal objetivo do experimento: a detecção de neutrinos, misteriosas partículas subatômicas que quase não têm massa, não apresentam carga elétrica e interagem muito pouco com qualquer material. Por ter núcleo atômico relativamente pesado, esse elemento químico tem maior probabilidade de interagir com os neutrinos, a segunda partícula mais abundante do Universo depois dos fótons (partículas de luz).
As câmaras de argônio líquido são o que há de mais avançado para a detecção de neutrinos. Quanto maior seu volume, maior a probabilidade de interação com as partículas. Por isso, o Dune terá quatro piscinas, cada uma com 17 mil toneladas desse elemento químico liquefeito. No entanto, alguns contaminantes dentro do tanque podem comprometer os resultados dos experimentos. Os três mais comuns são o oxigênio, a água e o nitrogênio. Para os dois primeiros tipos de impurezas, existem filtros moleculares eficientes. Para o nitrogênio, não – ao menos até a equipe brasileira aparecer com seu invento.
Os contaminantes são encontrados geralmente numa ordem de grandeza abaixo de 10 partes por milhão (ppm), ou seja, de pouquíssimos microgramas em cada grama de argônio. “Esse nível de impureza inviabiliza a realização do experimento e não existe a possibilidade de comprar no mercado argônio líquido com um grau de pureza mais elevado”, explica o físico Pascoal Pagliuso, líder do grupo na Unicamp que desenvolveu o novo método. “O nível exigido para o Dune dar certo é de pouquíssimas moléculas de impurezas, em partes por trilhão.”
Maior experimento em construção para estudos de neutrinos, no qual já foram investidos US$ 3,3 bilhões, o Dune é composto por uma instalação dedicada à produção de um feixe com trilhões dessas partículas, o Long Baseline Neutrino Facility (LBNF), instalado no Fermilab, e dois detectores separados por uma grande distância. Tudo começa no acelerador de partículas do Fermilab, em Batavia, nos arredores de Chicago, estado de Illinois. A partir de colisões de prótons, são geradas partículas menores, que decaem e originam outras partículas. Os neutrinos são um dos subprodutos desses choques e transformações da matéria ocorridos no acelerador, e o LBNF se encarrega de recolher e direcionar, de forma subterrânea, um feixe apenas com essas partículas para os dois detectores.
O primeiro, de menor porte, vai funcionar ali ao lado, perto da fonte de neutrinos no Fermilab, em uma caverna rasa, a 60 metros de profundidade. O segundo, muito maior, ficará a 1.300 quilômetros de distância no interior de uma antiga mina abandonada em Lead, cidade do estado de Dakota do Sul. Nessa localidade, funciona hoje a Sanford Underground Research Facility (Surf), que vai abrigar o detector em uma caverna que está sendo escavada a 1.500 metros de profundidade. A instalação foi projetada para evitar que a detecção do feixe de neutrinos em Dakota do Sul possa sofrer a interferência de raios cósmicos e neutrinos vindos do espaço e de perturbações da superfície.
Com apoio da FAPESP, os pesquisadores brasileiros começaram a desenvolver em 2020 uma forma eficiente de purificar o argônio com o emprego de uma peneira molecular porosa conhecida como zeólita, à base do mineral aluminossilicato (composto de alumínio, silício e oxigênio). A pesquisa básica que deu origem à tecnologia foi uma investigação da equipe de Pagliuso na Unicamp sobre as diferenças entre as moléculas de nitrogênio (N2) e de argônio (Ar) e sua resposta à aplicação de um campo elétrico.
O objetivo prático do trabalho era descobrir uma zeólita que pudesse adsorver (promover a adesão ou fixação) somente as moléculas de nitrogênio, deixando-as livres de argônio. Nessa busca, os conhecimentos do químico Dilson Cardoso, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), especialista em zeólitas, foram imprescindíveis. Foram feitas simulações computacionais com materiais que poderiam ser candidatos a atuar como um filtro para separar o nitrogênio do argônio. “A modelagem permitiu determinar o comportamento dos sistemas de circulação e purificação de argônio, oferecendo dados para o projeto de diversas peças do sistema”, explica o engenheiro químico Dirceu Noriler, da Unicamp. “Ganhamos informação sobre o tempo de saturação dos filtros, o número necessário de purificadores e o de ciclos para alcançar a pureza desejada.”
Em seguida, começaram testes em pequena escala em ambiente controlado superfrio com os materiais mais promissores. Com esse intuito, a Unicamp montou o Criostato de Testes de Purificação de Argônio Líquido (PuLArC). O equipamento, feito de aço inox, com capacidade para abrigar 90 litros de um fluido para ser purificado, foi construído pelas empresas Equatorial Sistemas e Akaer. Para o desenho da parte de refrigeração, o time também contou com a experiência do Laboratório de Criogenia do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. O criostato é como se fosse uma garrafa térmica de parede dupla, com vácuo no meio. Ele previne a condução de temperatura do ambiente para dentro do recipiente.
Segundo o engenheiro de materiais Fernando Ferraz, vice-presidente de Operações da Akaer, o experimento possibilitou a geração de modelos 3D de toda a planta de purificação. “Realizamos simulações completas do processo de transporte, montagem e instalação de todos os equipamentos necessários para um dos laboratórios do Dune”, comenta Ferraz. “O processo de controle de pureza do argônio requer ciclos de filtragem nos estados líquido e gasoso, regeneração e condensação.”
Os resultados dos testes feitos no PuLArC foram publicados em agosto de 2024 na revista Journal of Instrumentation. Segundo o trabalho, um filtro feito com o material conhecido como Li-FAU, que contém lítio além do aluminossilicato, foi o mais eficiente em capturar moléculas de nitrogênio em meio ao argônio líquido. Com seu emprego, a contaminação em 100 litros de argônio, que inicialmente se situava entre 20 e 50 ppm, desceu para a faixa de 0,1 a 1 ppm em menos de duas horas. O filtro também foi testado pela equipe do Dune em um recipiente maior, com capacidade para 3 mil litros, e os resultados foram igualmente bons.
No momento, o método à base de Li-FAU está em estágio final de testes no ProtoDune, o protótipo do Dune que funciona na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na fronteira franco-suíça. Ali, a quantidade de argônio líquido a ser purificado ultrapassa a casa das toneladas. O novo método foi patenteado e pode, no futuro, servir a outros fins. Ele parece ser versátil e ter potencial para ser utilizado para purificar outros gases, talvez o dióxido de carbono, e líquidos em escala industrial.
O filtro para retirar contaminantes do argônio líquido é a segunda contribuição significativa da participação brasileira no Dune, que reúne 1.400 cientistas e engenheiros de 200 instituições e 35 países. A primeira foi o desenvolvimento de uma armadilha de fótons, que capta a luz cintilante produzida pela interação dos neutrinos com os átomos de argônio. Invisível ao olho humano, a luz apresenta um comprimento de onda de 127 nanômetros. Ao armazenar esse tipo de registro, a armadilha permite estudar propriedades dos neutrinos e reconstituir sua trajetória em três dimensões. O aparato, denominado X-Arapuca, foi criado em meados da década passada pelos físicos Ettore Segreto e Ana Amélia Machado, da Unicamp. Sua versão 2.0, a mais atual, já está sendo utilizada nos Estados Unidos.
Os neutrinos disparados no Fermilab vão viajar pela crosta terrestre e chegar aos tanques com argônio líquido. A interação com o argônio libera elétrons e produz cintilações de luz. Um campo elétrico uniforme dirige os primeiros para detectores de elétrons. Os fótons gerados pelas cintilações são capturados pelas armadilhas X-Arapuca. “Com os fótons produzidos na cintilação, consigo calcular em que momento os neutrinos chegaram, de qual direção vieram e como se deu sua interação com o argônio”, explica Machado. Até hoje, não se conhece a massa de cada um dos três tipos de neutrinos conhecidos – neutrino do múon, neutrino do tau e neutrino do elétron – nem por que eles oscilam entre si conforme se movimentam.
No centro de pesquisas Sanford, onde ficará o maior detector do Dune, pelo menos dois dos quatro módulos do experimento contarão com X-Arapucas. As armadilhas formarão um sistema de fotodetecção ao redor das piscinas de argônio líquido. Por meio de financiamento da FAPESP, o Brasil será responsável pela construção de parte dos componentes e pela montagem e instalação de 6 mil X-Arapucas em um dos módulos do Dune até o início da tomada de dados, prevista para 2029. “O maior desafio será coordenar o processo de construção das armadilhas no país e o recebimento dos componentes restantes do exterior sem desrespeitar o cronograma do experimento”, avalia Segreto. “No Brasil, vamos produzir as partes mecânicas e os filtros ópticos, que são os itens mais importantes para o funcionamento do dispositivo.”
Para o físico Sylvio Canuto, da Universidade de São Paulo (USP), é muito importante investir no Dune, que deverá revelar detalhes sobre os neutrinos e, consequentemente, sobre a formação do Universo. Uma das questões mais intrigantes é tentar entender por que há mais partículas do que antipartículas no Cosmo. “Em tese, esperávamos que partículas e antipartículas tivessem sido criadas na mesma proporção no início de tudo. Mas vemos hoje que o Universo é formado majoritariamente por partículas. A origem desse mistério é atribuída ao papel dos neutrinos e hoje estamos mais próximos de desvendá-lo”, comenta Canuto, que acompanha a participação brasileira no Dune desde o início do projeto e é assessor da Diretoria Científica da FAPESP. O próximo passo, segundo o físico da USP, é garantir a participação brasileira no trabalho de análise dos dados produzidos no Dune, formando assim um hub de referência no país para a América Latina.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP.