22 de agosto de 2024 FAPESP | Plataforma de internet das coisas auxilia produtor a planejar uso de água
Solução desenvolvida por startup apoiada pelo PIPE-FAPESP busca dar ao agricultor previsibilidade do estoque hídrico disponível na bacia que utiliza em um horizonte de seis meses
Texto: Lucia Reggiani – FAPESP Pesquisa para Inovação | Foto de capa: Fernando Augusto – Pixabay
Como fazer uso inteligente da água na irrigação da lavoura sem saber se o reservatório disponível oferece o volume necessário? E o regime de chuvas, dará conta da captação esperada? A quantidade de água utilizada está alinhada com a autorização dos órgãos de controle de recursos hídricos? Dar respostas a essas e outras questões do produtor rural e da indústria é o objetivo de um projeto desenvolvido em Campinas pela Espectro e apoiado pelo programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) da FAPESP.
O projeto, iniciado em dezembro de 2022, busca dar ao produtor previsibilidade do estoque hídrico disponível na bacia que utiliza em um horizonte de seis meses. Dessa forma, ele consegue se programar, investindo em reserva de água, mudando a cultura que planeja plantar ou tomando outro tipo de decisão.
Em tempos de mudanças climáticas, com alterações na dinâmica das chuvas, a previsibilidade perseguida pelo projeto pretende auxiliar o produtor a manter a qualidade da produção mesmo em caso de crise hídrica, como a que ocorreu no Estado de São Paulo em 2021 e levou municípios a lacrar as bombas de irrigação, direcionando a captação de água para consumo humano.
Para o PIPE Fase 2, a Espectro propôs realizar um estudo dos regimes de chuva em algumas bacias escolhidas, utilizar informações de previsão de tempo de diversos órgãos, desde os oficiais às imagens de satélites, analisar o histórico da evolução dos reservatórios e criar um algoritmo de inteligência artificial (IA) para oferecer ao irrigante a dinâmica do reservatório em que capta a água.
Denominado PalmaFlex UmiSolo-Total, o projeto é o módulo que completa a plataforma de internet das coisas (IoT) PalmaFlex UmiSolo, iniciada em 2019 com o monitoramento em tempo real de água disponível no solo e recomendações de irrigação.
No módulo inicial, sensores instalados no solo, em várias profundidades, captam informações a uma cadência escolhida pelo cliente e as transmitem para um banco de dados na nuvem, onde são convertidas em dados de umidade do solo estratificada. A plataforma web correlaciona esses dados com outras informações e apresenta os resultados em forma de gráficos, tabelas e alarmes, de forma a simplificar e apoiar o trabalho do produtor, do agrônomo e de outras pessoas envolvidas no trabalho de campo.
Solução completa de comunicação de dados
O sistema nasceu da intenção dos engenheiros eletricistas Adilson Chinatto e Cynthia Junqueira, sócios da Espectro, de desenvolver um produto próprio, que espelhasse sua experiência em transmissão de sinais e telemetria, e levasse a empresa a um patamar além da consultoria, pesquisa e desenvolvimento, área em que atua há 20 anos.
A ideia era criar uma solução completa de comunicação de dados, modular, de fácil escala, para várias aplicações na agricultura e na indústria, com um núcleo comum. Sua missão: suprir as necessidades de monitoramento e comunicação de dados no campo.
A intenção materializou-se na plataforma PalmaFlex, representada na logomarca pela palma forrageira, um cacto cuja maior riqueza está na sua versatilidade, revelando alto nível aquoso e de nutrientes essenciais, usado principalmente na alimentação do gado. Seu núcleo comum é composto de receptor e transmissor de sinal por radiofrequência, capaz de estabelecer um enlace de longa distância e de baixo custo para a conexão de diversos dispositivos, especialmente os sensores.
No módulo de medição de umidade do solo, os sensores instalados enviam a informação para um coletor de dados alimentado por bateria interna e por energia solar. O coletor transmite a informação para a nuvem, onde são feitos todos os cálculos e os resultados são acessados no site da plataforma por celular, tablet ou computador.
Todo o conjunto – hardware, software e protocolos de comunicação – foi desenvolvido pela Espectro. “Nas áreas urbanas, as redes de dados estão disponíveis, tanto no celular como para IoT especificamente, como LoRa, Sigfox e ZigBee, mas essas redes não chegam ao campo por não serem interessantes economicamente para as grandes empresas”, afirma Adilson Chinatto. Daí a opção pela produção verticalizada.
A Espectro desenvolveu então um concentrador ou gateway baseado em LoRa, usando as mesmas premissas dos grandes equipamentos metropolitanos, mas em um dispositivo pequeno, capaz de cobrir 3 mil hectares, a dimensão da propriedade de um médio produtor. O próprio usuário instala o concentrador em sua rede de dados (Wi-Fi ou a cabo) e conecta a antena na cumeeira da casa.
Já o coletor de dados é instalado em campo juntamente com os sensores e de tempos em tempos transmite as informações de forma autônoma. “Na agricultura, a taxa de envio de dados não precisa ser muito alta, a cada cinco minutos é mais do que suficiente. Na indústria, conseguimos enviar em intervalos menores”, explica Chinatto.
O custo dessa cobertura é menor que R$ 1 por hectare, “muito baixo em relação a outros sistemas existentes”, diz Junqueira, além de proporcionar redução de verificações e anotações, economia de insumos, água e energia em variadas aplicações e aumento do ganho final do produtor ou do industrial.
Mais módulos
A evolução do sistema aconteceu por demanda dos clientes, que queriam, além do monitoramento de solo, uma estação agrometeorológica para monitorar ventos, chuva, radiação solar e outros fatores climáticos. A Espectro então agregou sensores aéreos à sua plataforma, aumentando a gama de informações fornecidas aos clientes, tais como a evapotranspiração diária e janelas de oportunidade para pulverização.
Mais adiante, o sistema passou a monitorar outros itens da infraestrutura da fazenda, como, por exemplo, as correntes elétricas de motores e bombas. “É comum o produtor ligar a bomba de irrigação à noite, quando a energia elétrica é mais barata, verificar que uma fase está fora de funcionamento e não poder contar com a equipe de manutenção para religar, pois a equipe não está no horário de trabalho”, explica Junqueira.
Preparada para esses eventos, a PalmaFlex dispara um alerta informando que a fase caiu, dando ao produtor a condição de tomar ações de emergência, resolver o problema ou compensá-lo no dia seguinte. Já em poços artesianos e semiartesianos tanto a vazão como os níveis estático e dinâmico do poço podem ser monitorados, atuando como uma ferramenta de prevenção quanto à queima da bomba e diminuindo a quantidade de manutenções periódicas necessárias.
A plataforma é completamente personalizável para atender às demandas de diferentes realidades de produtores rurais. Tomando como exemplo a aplicação em irrigação para personalizar o monitoramento, o cliente fornece as informações dos métodos e equipamentos que utiliza, dados relacionados à cultura, como tipo, data de plantio, entre outras informações, e dados texturais do solo. Na plataforma, essas informações são correlacionadas com os dados dos sensores instalados em campo para que seja calculado quando e quanto irrigar. O software de business intelligence (BI) da plataforma exibe os resultados em tabelas e gráficos, e o usuário pode exportá-los em planilhas. As informações são mantidas no banco de dados por um ano.
Atualmente, a plataforma conta com os módulos Agricultura, Conforto Animal e Qualidade da Água, Indústria e Previsão de Reservação. Este último, em parte desenvolvido no âmbito do projeto PIPE, já está funcionando parcialmente e em comercialização na plataforma. “O módulo já desenvolvido monitora o nível de reservatórios de água ou vinhaça, o resíduo gerado durante a produção do álcool e açúcar. Instalamos recentemente dez sistemas numa usina de cana no Estado de São Paulo para monitorar dez tanques de vinhaça”, diz Junqueira.
Nesse módulo, o sensor não toca o líquido, mas mede o nível e calcula o volume com base nas dimensões do reservatório fornecidas pelo usuário. Ao medir o volume da vinhaça, o sistema permite que o operador evite o derramamento no solo, o que acarretaria problema ambiental e multa. Além disso, a plataforma permite maior racionalidade no uso da vinhaça em fertirrigação, reduzindo custos e garantindo operação em conformidade com normas do meio ambiente.
Como o módulo desenvolvido no projeto PIPE reúne tudo o que a plataforma já faz, incluindo novos monitoramentos e previsões, a Espectro denomina o conjunto como ecossistema PalmaFlex Total.
Novos sensores
Além do módulo de Previsão de Reservação, uma segunda vertente do projeto PIPE em andamento é o desenvolvimento de sensores mais simples e precisos. Um deles é o sensor de nível de reservatório. Além de sua aplicação em tanques de vinhaça, vários foram instalados em reservatórios estratégicos para acompanhamento e coleta de dados para alimentar os algoritmos de inteligência artificial que a empresa está desenvolvendo.
Outro equipamento, em fase final de desenvolvimento e ensaios em laboratório, é um novo sensor de umidade do solo que permitirá coleta de dados em várias profundidades utilizando apenas uma haste. Ele pode funcionar com o coletor de dados de cinco portas atual ou transmitir as informações via radiofrequência com o protocolo PalmaFlex de forma autônoma.
O diferencial desse projeto, segundo os sócios da Espectro, reside na integração de módulos de sensoriamento local, remoto e algoritmos de previsão climática para o cálculo e estimação futura do balanço hídrico e oferta de água em toda uma bacia hidrográfica que alimente sistemas de irrigação. A empresa já tem experiência no levantamento do balanço hídrico local com apoio de sensores de solo e climáticos graças aos módulos destinados à agricultura já comercializados.
“Estimamos a profundidade da raiz, que absorve a água do solo, e com essas informações e a leitura do sensor fornecemos o painel de alertas, que informa qual é quantidade de água disponível e mostra a evolução do armazenamento de água dia a dia”, diz Chinatto. Da mesma forma, a empresa já atua no fornecimento de informações climáticas para a pulverização, tanto em termos de temperatura, umidade relativa e velocidade do vento quanto em delta T, uma informação importante para o agrônomo, que indica as condições próprias ou impróprias para a atividade.
O desafio proposto no projeto PIPE é incrementar essas técnicas para que passem a gerar informações regionalizadas em vez de localizadas. Para tanto, é necessário trabalhar em um ambiente multiplataforma e com integração de sensores, fusão de dados, modelamento e elaboração de algoritmos de aprendizado de máquina e inteligência artificial.
Equipe de alto nível
Missões complexas exigem cérebros à altura para realizá-las. “Encontrar as pessoas adequadas foi difícil, mas conseguimos trazer para o projeto dois doutorandos da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]: Marcos Ricardo Covre e Douglas Henrique Siqueira Abreu”, conta Junqueira.
Os pesquisadores trabalham na elaboração de algoritmos, no teste e na validação. Covre avalia os trabalhos teóricos e práticos existentes, mantendo contato com pesquisadores da Embrapa Cerrados, por exemplo, que fizeram um levantamento aprofundado da dinâmica de reservatórios usados em irrigação em várias regiões. Abreu dedica-se à correlação dos bancos de dados disponíveis para viabilizar o fornecimento de informações para o irrigante.
Além disso, Covre trabalha na modelagem matemática do balanço hídrico, uma forma de contabilizar as entradas e saídas de água de um reservatório natural. “Parte do desafio é descobrir a forma do reservatório para medir o volume de água que ele contém e assim fazer a predição para um horizonte de seis meses”, diz.
E como descobrir o formato e a profundidade, sem estar no local? Esse é o desafio de Abreu, que trabalha na captação de dados com imagens de satélites e outras informações. Unindo análise estatística, definição de precipitações e um modelo de inteligência artificial a intenção é chegar a uma previsão futura de possíveis áreas de lago. “A ideia é ter um algoritmo mais generalista, que consiga trabalhar com qualquer lago”, diz Abreu.
Embora ainda haja mais modelos para trabalhar, mais dados para coletar, mais lagos para aferir e ampliar a generalidade do modelo para obter um bom produto envolvendo inteligência artificial, o modelo atual, segundo Chinatto, já acerta em torno de 80% das variações.
Além de Covre e Abreu, financiados pela FAPESP, o projeto conta com um bolsista de marketing, pago pelo Sebrae, o engenheiro Fernando Ikedo, que apoia a área comercial e, durante o primeiro ano do projeto, também contou com um engenheiro agrônomo, José Matheus de Britto, que colaborou nas análises agronômicas e especificações de ensaios do novo sensor de solo.
Para os sócios da Espectro, sem esses apoios, não seria possível desenvolver o PalmaFlex Total. “Sem a FAPESP, nós não teríamos acesso a profissionais com a bagagem que eles trazem para a empresa. Com eles, o projeto pode ser bem desenvolvido”, diz Chinatto.
O objetivo é colocar o PalmaFlex Total no mercado até o final de 2025, já incluindo as informações relacionadas às autorizações dos órgãos estaduais para o uso de água na irrigação e disponibilidade hídrica.
Matéria originalmente publicada por FAPESP Pesquisa para Inovação .