21 de setembro de 2023 Revista Rede Câncer | Para além da indústria farmacêutica
PELA PRIMEIRA VEZ, UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA DESENVOLVE IMUNOTERÁPICO EFICAZ CONTRA CÂNCER DE BEXIGA
Um medicamento 100% desenvolvido por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tem mostrado bons resultados no tratamento do câncer de bexiga avançado em pacientes já submetidos, sem sucesso, a tratamentos convencionais e que tinham indicação para retirada do órgão (a chamada cistectomia).
O primeiro ensaio clínico, realizado no Hospital Municipal de Paulínia (SP), teve início em 2018, acompanhando 44 pacientes (30 homens e 14 mulheres). Após dois anos, o tratamento experimental havia eliminado o tumor em 72,7% dos casos. Nos demais, o câncer voltou, porém, com tamanho bem menor e menos agressivo. Nenhum paciente precisou retirar a bexiga nem morreu. Os resultados animadores foram apresentados no XXII Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, em novembro de 2021, e reconhecidos pela Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (Sboc) com o Prêmio Sboc de Ciência.
As pesquisas tiveram início há 15 anos. Um dos inventores do medicamento, o professor Wagner José Fávaro, do Instituto de Biologia da Unicamp, conta animado: “Iniciamos as pesquisas após a fusão de dois laboratórios: o meu, que já trabalhava com câncer, e o do professor Nelson Duran, do Instituto de Química, com experiência em nanotecnologia. Com a fusão, passamos a nos dedicar à nanomedicina. Desenvolvemos plataformas para melhorar quimioterápicos existentes e também criamos novas moléculas. Uma delas se chama Modificador de Resposta Biológica Complexo Fosfato Orgânico 1 (MRB-CFI-1), batizado com o nome comercial OncoTherad, um imunoterápico totalmente desenvolvido em uma universidade pública brasileira e cuja patente é 100% de seus inventores”. O fármaco já teve patentes concedidas nos Estados Unidos (fevereiro de 2021, fevereiro de 2023, abril de 2023 e maio de 2023), no Brasil (final de 2022) e no início de maio deste ano, na Europa.
MECANISMO DE AÇÃO
Fávaro explica que a molécula estimula a produção da proteína chamada interferon, permitindo a ativação de células do sistema de defesa, os linfócitos T, importantes para combater o câncer e também algumas doenças infecciosas. A substância melhora a resposta imunológica por meio de dois mecanismos de ação: ativa as células de defesa enquanto reduz a formação de metástase e vasos sanguíneos que alimentam o câncer. Com isso, diminui também a resistência dos tumores a tratamentos convencionais, como a quimioterapia.
Além dos bons resultados, a outra boa notícia é que o novo imunoterápico praticamente não tem efeitos colaterais. Mesmo pacientes que relataram algum desconforto tiveram, na verdade, sintomas leves, como alergia, ardência ao urinar, cistite, dor articular leve e febre baixa. Bem diferente do que acontece no tratamento convencional, feito com oncoBCG.
O urologista João Carlos Cardoso Alonso, que acompanhou os estudos clínicos no Hospital Municipal de Paulínia, explica que a imunoterapia com oncoBCG foi desenvolvida em 1976 e, desde então, não havia surgido nada melhor para tratar o câncer de bexiga. O grande problema é que, em boa parte dos pacientes, o tumor reaparece, e os efeitos colaterais são bem intensos.
A maioria dos casos de câncer de bexiga começa nas células da camada que reveste o órgão internamente (carcinoma de células de transição). Esse tipo pode se disseminar através do revestimento da bexiga, invadir sua parede muscular e chegar até órgãos próximos ou gânglios linfáticos, transformando-se num câncer invasivo. O tratamento inicial consiste na raspagem da lesão através da uretra (ressecção transuretral, também chamada de RTU). Após a cirurgia, são necessárias aplicações de oncoBCG, a mesma medicação usada no tratamento da tuberculose. O objetivo é estimular o sistema imune para evitar que o tumor volte a crescer. “Porém, após dois ciclos de oncoBCG, quando há recidiva, a indicação é a retirada total da bexiga. Acontece que muitos pacientes não querem passar por esse procedimento ou não têm condições clínicas para a cirurgia, seja por conta de doenças associadas (comorbidades) ou idade avançada. Foram nessas situações que decidimos testar a eficácia do OncoTherad. Todos os participantes do estudo tinham indicação para a cistectomia radical”, explica Alonso.
Nas primeiras seis semanas, os voluntários receberam aplicações semanais do imunoterápico dentro da bexiga e por via intramuscular, nos glúteos. Depois, as injeções foram dadas a cada 15 dias ao longo de três meses. Em seguida, passaram a ser mensais até completar dois anos. “Transcorrido esse tempo, o que vimos foram esses resultados positivos do tumor eliminado em 72,7% dos casos, nenhum paciente faleceu ao longo da pesquisa, nenhum precisou tirar a bexiga e mesmo os que recidivaram foram em downstaging, ou seja, apresentaram quadro bem mais leve da doença”, relata o urologista.
PACIENTES APROVAM
O otimismo é percebido também nos pacientes. Para o comerciante Washington Luiz Evangelista Cavalcante, de 61 anos, morador do Rio de Janeiro, o OncoTherad “literalmente salva muitas vidas”, diz ele, que descobriu o câncer em 2015. Depois de passar por um sofrido tratamento convencional com oncoBCG e três RTUs, conta que viu a morte bater à porta: “A oncoBCG me fez desenvolver tuberculose na medula. Eu, que tenho 1,87m, cheguei a pesar 73kg. Urinava muito sangue, estava fraco, magro e debilitado ao extremo. Não conseguia nem dormir. Não gosto nem de lembrar. Realmente foi a pior fase da minha vida. Os médicos queriam fazer uma cistectomia radical, mas eu disse que não ia fazer de jeito nenhum. Quando soube das pesquisas com o OncoTherad, procurei a Unicamp. Posso dizer que, quando cheguei lá, estava desenganado. Eles me devolveram a vida”, conta Washington.
O mundo passava pela pandemia da Covid-19 quando, em 2020, o comerciante começou o tratamento, em Paulínia. “Foi bem suave. Não tive um enjoo sequer”, conta ele, que, em março, recebeu alta. “Hoje estou com 92kg, corro, malho, faço de tudo. Sinto a bênção de estar vivo e de ter sido curado por um medicamento desenvolvido por brasileiros dentro de uma universidade pública”, comenta.
Também voluntário do ensaio clínico em Paulínia, o aposentado João Carlos Vendemiatto, de 70 anos, morador de Campinas (SP), descobriu um câncer de bexiga em fevereiro de 2018. Ele passou por duas RTUs e, ao dar início ao uso da oncoBCG, teve muito enjoo, vômito e fraqueza. “Até que em agosto de 2019, vi na TV uma reportagem sobre o OncoTherad e na hora decidi que deveria correr atrás daquilo. Não tem como a gente não se emocionar, sabe? Porque realmente é incrível tudo o que eles [o professor Wagner e o urologista João Alonso] fazem. Foram anjos em minha vida, e espero que em breve o remédio chegue a todo mundo”, profetiza.
João Carlos comemora a eficácia do tratamento e diz que quase não sofreu efeitos colaterais. Sentiu apenas calafrios e uma pequena alergia, que foi prontamente tratada e resolvida. “Eu saía das aplicações e ia fazer compras. Vida normal. Nem se compara ao tratamento difícil que fiz com a oncoBCG”, relata o aposentado, que teve alta em janeiro deste ano.
“Sou urologista há mais de 22 anos, e esse trabalho com o OncoTherad é uma felicidade. É nítida a diferença tanto na resposta clínica, que é bem melhor, quanto na questão dos efeitos colaterais, bem mais brandos. Por isso, os pacientes têm mais aderência ao tratamento. É a primeira imunoterapia genuinamente brasileira e que vem mostrando excelentes resultados. Queremos poder chegar a mais pessoas, mas é um longo processo até lá”, observa Alonso.
ENTRAVES BUROCRÁTICOS
Apesar das patentes já concedidas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa, e dos bons resultados comprovados, ainda vai demorar para o OncoTherad chegar a mais pacientes. Um entrave atrasa o andamento do processo no País.
É que o Brasil não tem tradição na produção de insumos farmacêuticos ativos (IFA) e não faz inovação radical. “Temos grande expertise em fazer genéricos e biossimilares, mas molécula nova, medicamento novo, não temos experiência para fazer. Não existem sequer normas de boas práticas de fabricação da nossa agência reguladora [a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa] para produção e escalonamento do IFA, a base da molécula. Não há ainda uma norma que regulamente a construção de uma planta-piloto para a produção em escala de uma nova molécula. Formulamos medicamentos, mas a matéria-prima vem de fora. E isso é um problema que estamos enfrentando agora”, explica Fávaro.
Segundo o professor, diversas associações farmacêuticas, como a Abiquifi, Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos, em parceria com universidades, indústrias farmacêuticas e a própria Anvisa estão criando um grupo de trabalho para discutir, implementar e fomentar um modelo nacional de inovação radical. E o OncoTherad é o grande exemplo de inovação radical que ajuda a fomentar essa iniciativa. E, claro, as patentes já depositadas e concedidas ajudam bastante, porque são uma chancela em resposta à seriedade do trabalho já desenvolvido com o imunoterápico.
“Essas normas precisam ser criadas para que os trâmites sejam percorridos. Então, sim, é burocrático. Ainda não sabemos quanto tempo pode demorar, mas as coisas estão andando e estamos mais otimistas. A Anvisa é uma instituição muito séria, uma das mais respeitadas no mundo. A partir desse grupo de trabalho, vamos esperar essa ambiência ser criada. E é bom frisar, sempre, que 100% da titularidade dessa patente corresponde à universidade pública e a seus inventores. Não tem indústria farmacêutica envolvida. É a primeira vez que isso acontece no Brasil e é incrível. O OncoTherad e seus resultados não constituem uma questão de crença ou fé, e sim de fatos consolidados e reconhecidos por órgãos competentes aqui e no mundo. Assim, vamos constituindo as bases para criação de um ecossistema para a tão almejada Inovação Radical no País”, diz Fávaro.
Atualmente, o desenvolvimento do fármaco está na fase 1-2 (fase clínica, de desenvolvimento, tratamento e evolução dos pacientes) e em maio foram iniciados os ensaios clínicos multicêntricos: “Estamos em processo de expansão dos estudos. Em maio, começamos a trabalhar também com o Hospital São Vicente, em Jundiaí, com mais 80 pacientes. A gente quer aumentar a visibilidade e mostrar a importância dessa medicação, mas temos uma jornada até a fase 3, que é quando o medicamento é então aprovado pela Anvisa e pode, finalmente, chegar ao mercado”, explica Alonso. Por enquanto, o OncoTherad não pode ser comercializado nem indicado para pacientes que não façam parte do estudo.
SPIN-OFF
O OncoTherad foi a primeira propriedade intelectual de titularidade da Unicamp licenciada com exclusividade para uma spin-off formada por professores-inventores da patente, desde a aprovação da nova Política de Inovação da Unicamp, em 2019. Sendo assim, a Nanoimmunotherapy Pharma Ltda é a única empresa que pode explorar o uso do OncoTherad, o que é uma grande vantagem competitiva no mercado.
Spin-off é uma empresa criada a partir de uma tecnologia desenvolvida em uma universidade ou instituto de pesquisa. “A função da empresa é viabilizar e vencer as etapas regulatórias. Estamos nos tornando produtores de um IFA brasileiro para o tratamento de câncer de bexiga. Toda a sociedade só tem a ganhar com isso. Para nós, isso tudo é um grande marco e também uma devolução muito importante para a sociedade de todo o investimento feito em pesquisadores na universidade pública”, comemora Fávaro.
Matéria original publicada na Revista Rede Câncer.