30 de agosto de 2021 Boldrini e o impacto social de uma das primeiras empresas-filhas da Unicamp
De um ambulatório improvisado debaixo das escadas da Santa Casa de Campinas, a professora aposentada da Unicamp, Silvia Brandalise, criou o maior centro de referência no tratamento de câncer infantil e doenças do sangue da América Latina.
Texto: Ana Paula Palazi | Fotos: Divulgação Boldrini
Foi durante um evento do grupo Unicamp Ventures, em 2020, com tema “saúde”, que Silvia Brandalise procurou a Agência de Inovação da Unicamp com um pedido, a princípio, estranho. Ela buscava o cadastramento e o reconhecimento do Centro Infantil Boldrini como uma das primeiras empresas-filhas da Unicamp, na intenção de se conectar ao ecossistema. Brandalise mostrou que o requerimento não apenas era procedente, com embasamento documental, como envolvia uma história singular de empreendedorismo social impulsionada pelo próprio Zeferino Vaz, médico e reitor que conduziu a construção da Universidade Estadual de Campinas.
Com 43 anos de existência, o Centro Infantil de Investigações Hematológicas Dr. Domingos A. Boldrini, em Campinas, pode ser considerado, hoje, o maior exemplo de uma empresa-filha da Unicamp de alto impacto social. O hospital filantrópico já atendeu mais de 30 mil pacientes encaminhados com suspeita ou diagnóstico de câncer ou de doenças hematológicas e, 10 mil estão em acompanhamento. Muitos dos quais, a Dra Silvia Brandalise, médica oncologista, faz questão de conhecer pessoalmente.
Aos 78 anos, a docente aposentada da Unicamp que tornou possível a cura de 6 mil crianças diagnosticadas com tumores malignos e ajudou a formar número expressivo de novos médicos, não pensa em parar de trabalhar. Ao contrário, a presidente do Boldrini, acostumada a transformar dificuldades em oportunidades, tem muitos projetos em mente para os quais busca parcerias. Todos pautados no mesmo tripé que deu origem ao Centro de referência no tratamento infantil: assistência, ensino e pesquisa.
“Meu objetivo é um só: evitar que a criança fique doente. Esse é o único ponto que norteia a minha profissão e, nessa idade, estou começando do zero”, diz a pediatra que voltou a estudar sobre física básica depois de cinquenta anos de formada, na tentativa de encontrar novas modalidades de irradiação para o tratamento do câncer cerebral de crianças.
De médica a empreendedora em saúde da criança
Quando chegou a Campinas, na década de 1970, a convite do noivo, não havia lugar para a médica recém-formada ficar no ambulatório da Santa Casa de Misericórdia de Campinas. Mas Silvia queria atender pacientes e encontrou um espaço debaixo das escadas do hospital onde montou um consultório improvisado. Atendia as crianças que chegavam tarde e tinham que esperar muito tempo para serem avaliadas.
Não demorou muito para a médica ser chamada pelos superiores. O pequeno ambulatório ia tão bem, que as famílias deixavam de comparecer às consultas agendadas para que os filhos fossem avaliados por Brandalise.
A médica que acolhia os pacientes e humanizava as consultas também passou a cuidar dos filhos das famílias campineiras de alto poder aquisitivo. Foi nessa época que um clube de serviço de mulheres da cidade, o Clube da Lady, disponibilizou uma casa para Brandalise montar um consultório.
“Todas as pessoas que vinham me procurar, para resolver qualquer problema dos seus filhos, eu esperava pela pergunta: ‘como é que eu posso te ajudar?’ Nunca eu mesma iniciava a conversa, e, assim, fomos equipando a recepção, os consultórios, a sala de reunião e o laboratório”, lembra Brandalise sobre o primeiro endereço do Boldrini, na região central de Campinas.
A bronca do reitor que deu impulso à criação do Boldrini
Brandalise era professora em dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas. Naquela época, o Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp ainda era um projeto lançado em pedra fundamental – “o campus era um enorme campo”, lembra a oncologista – e os médicos, residentes e internos exerciam suas atividades e estudos na Santa Casa da cidade.
Mas era no porão do sobrado de número vinte e um, na rua José Teodoro de Lima, bem em frente ao Banco de Sangue da Santa Casa, que Brandalise passava a maior parte do tempo. À medida que os atendimentos cresciam no consultório filantrópico, ficava mais gritante a ausência de leitos no hospital. Dessa vez, o próprio professor Zeferino Vaz chamou a médica para dar-lhe uma advertência.
“A senhora não pode atravessar a rua, tem que ficar dentro da Santa Casa”, disse à época o então reitor.
Como Brandalise sabia da importância do trabalho que desenvolvia, deu um jeito de reverter a situação. Para convencer o reitor de que as saídas valiam a pena, explicou que tudo no ambulatório improvisado era doado por voluntários. Mais do que o atendimento, o consultório servia como fonte de estudos e pesquisas. Uma das marcas dessa empreendedora da saúde é a persuasão, e, então, foi orientada a formalizar o local.
“A senhora vai escrever um regimento de uma personalidade jurídica, vai dar um nome e, aí, nós fazemos uma parceria público-privada”, lembra Brandalise sobre a ordem direta recebida do reitor. “E eu sabia fazer regimento? Claro, que não!”, acrescenta a médica, com bom humor.
Boldrini e Unicamp: parceria selada há quatro décadas
O primeiro estatuto do Boldrini foi baseado no regimento da Associação de Educação do Homem de Amanhã – a Guardinha, de Campinas -, dando início a criação do Centro Infantil Boldrini, como uma das primeiras empresas-filhas filantrópicas da Unicamp. Na época, ainda não se usava essa terminologia para designar empreendimentos nascidos a partir de alunos, ex-alunos e docentes da Universidade Estadual de Campinas.
A relação próxima do Boldrini com a Unicamp está registrada em documentos, guardados por Brandalise. Em dois de junho de 1981, o Termo de Parceria com a Universidade foi firmado, “visando o intercâmbio de conhecimento e a cooperação nos seus programas de trabalho”, conforme descrição no cabeçalho do documento.
Quem assina o documento é a socialite Betty Nunes, representante do Boldrini – Brandalise só viria a assumir a presidência anos mais tarde – e o professor Plínio de Alves Moraes, como reitor da Unicamp. Zeferino Vaz havia falecido quatro meses antes e não chegou a ver o início formal do maior centro de referência no tratamento de câncer infantil e doenças do sangue da América Latina.
“Não tenho dúvidas, de que esta parceria foi um empreendimento de confiança do professor Zeferino Vaz, que se revestiu de enorme sucesso. Sucesso que se traduziu em vidas salvas, ensino aos médicos residentes e alunos, além das pesquisas realizadas”, comenta Brandalise.
O impacto do Boldrini como empresa-filha na sociedade
Nessas quatro décadas, Silvia Brandalise ajudou a definir os protocolos do tratamento oncológico infantil e a aumentar a taxa de cura das crianças com leucemia linfoide aguda de apenas 5%, no final da década de 1970, para os atuais 80%.
Hoje, o Boldrini realiza uma média de 3,2 mil consultas ao mês e conta com um centro próprio de pesquisas – o maior da América Latina com foco em câncer pediátrico. Entre os alvos de investigação estão novas drogas e novas terapias, seja para atacar especificamente as células cancerígenas (terapia alvo) ou baseadas na introdução de genes sadios (terapia gênica).
“Eu, como filha menor, gostaria que meus irmãos me ajudassem a carregar os jovens pesquisadores para garantirmos o futuro. Gostaria muito que me ajudassem a analisar e fazer também o diagnóstico da saúde ambiental. O que a gente respira, o que bebe e o que ingere, com foco na saúde da criança”, convoca a médica.
O próximo sonho que a presidente do Boldrini tomou por tarefa de vida é construir um hospital de especialidades pediátricas em Campinas. Ele já tem até nome – a cidade da saúde da criança -, e evitaria a peregrinação de muitas crianças e suas famílias à procura de tratamento especializado para além do câncer e das doenças do sangue.
O projeto está pronto há mais de dez anos, faltam investimentos de filantropos estratégicos, dispostos a colaborar na busca por respostas a problemas que impactam toda a sociedade brasileira.
Enquanto o novo hospital não sai do papel, o Boldrini têm atuado na padronização de condutas para construção de um atendimento integrado entre unidades básicas de saúde e hospitais secundários e terciários, para que as crianças (e até quem passou dessa idade, mas não consegue se desligar do Boldrini) se sintam acolhidas em toda a rede; e as equipes, por sua vez, saibam como atender as especificidades de alguns quadros de doenças pediátricas, aprimorando, de um lado, o diagnóstico precoce na rede de atendimento e, de outro, desafogando os centros de referência.
Mais do que acolher, tratar e curar, o Boldrini tem como propósito o amplo cuidado da criança, e isso envolve ir além da parte médica. “O pediatra não olha só a doença. Ele olha para a família da criança, para a escola da criança e, também, para criança”, conclui Brandalise.